5 de junho de 2014

Nairo Quintana faz história no Giro d’Italia 2014. E o Stelviogate com isso?*

Classificação final do Giro d'Italia 2014. Maior aqui

A Era Nairo Quintana começou, dizem os entusiastas. O Giro d’Italia 2014 não teve grandes nomes, diminuem os mais céticos. Pode-se concordar com qualquer uma das duas visões. Ou com nenhuma. Só não dá pra negar que ler o nome do colombiano de 24 anos no topo da classificação geral no último domingo, dia 01 de junho, foi um momento histórico.

Todo campeão de um Grand Tour escreve seu nome na história do ciclismo, mas desta vez o feito teve doses um pouco maiores de ineditismo e empolgação por alguns fatores (além, é claro, dos fanáticos colombianos que enfrentaram a neve e o que viesse do outro lado do Atlântico):

- Quintana é o primeiro sul-americano campeão do Giro d’Italia.

- Apenas o segundo colombiano a ganhar um Grand Tour.

- O campeão mais novo desde 2004, quando o italiano Damiano Cunego venceu aos 22 anos.

- Foi a primeira vez na história do Giro que nenhum europeu vestiu a maglia rosa durante as 3 semanas de disputa. Sinal da internacionalização do ciclismo de estrada e também da prova, que já viu muitos italianos campeões. É impossível competir com o Tour de France, mas atualmente é fácil provar que o Giro está cada vez mais respeitado, o que acarreta em grandes nomes o disputando, uma competição mais atraente para o público e maior repercussão pelo mundo.

- O pódio com Quintana, Rigoberto Urán, 27 anos, e Fabio Aru, 23, consistiu na menor média de idade desde a década de 1940. Sinal de que muitos veteranos já não conseguem competir em pé de igualdade e passarão a ser gregários de ciclistas mais jovens no final de carreira? Também. Mas, principalmente, sinal de que a “nova geração” já é uma realidade e nos próximos anos os Grand Tours prometem ainda mais.


É bem verdade que o Giro-2014 não teve nomes de peso, como Chris Froome, Alberto Contador, Vincenzo Nibali e Bradley Wiggins (foco no Tour de France – Wiggins ainda incerto –, expectativa é das melhores), Alejandro Valverde, Chris Horner (sofreu acidente treinando em abril) e Richie Porte (gastroenterite + preparação longe do ideal no início do ano).

Porém, isso não vai ser lembrado para diminuir a conquista do colombiano. Mesmo sem teorias da conspiração, o asterisco que vai acompanhar o título de Quintana vai ser o Stelviogate. Se isso é (ou por quanto tempo vai ser) um incômodo para ele, a experiência vai responder.

Quintana “surgiu” para o mundo no ano passado, quando foi o único capaz de acompanhar Froome nas montanhas do Tour. Venceu uma etapa, foi vice-campeão geral e acumulou as camisetas branca com bolinhas e branca. O desempenho foi tão impressionante que mesmo sem o título o atleta da Movistar foi recebido pelo presidente da Colômbia e virou ídolo no país. O Giro provou o quanto Quintana é difícil de ser batido nas montanhas e como ele evoluiu em time trials. Mas o principal ponto a ser destacado é a tranquilidade: de manter a mesma fisionomia relaxada mesmo na escalada mais dura e, mais importante, de lidar tão bem com a pressão de, aos 24 anos, liderar uma equipe e carregar uma nação nas costas.

A seguir, o maior resumo (ou seja, o pior resumo) de como a maglia rosa terminou com Quintana em 2014, em um “arquivo- pessoal-compartilhado-com-o-mundo-como-uma-pseudo-página-de-Wikipedia-sem-colaboradores”.

1ª Etapa, 09 de maio – TTT de 21,7km (perfil)
Desastre na Garmin-Sharp depois de 15 minutos
O Giro d’Italia que começou em Belfast teve a primeira baixa para a torcida local rapidamente. Um bueiro com seus arredores encobertos pelas sucessivas camadas de asfalto, tradicional armadilha também encontrada nas ruas de São Paulo, somado à chuva levou logo quatro ciclistas da Garmin-Sharp para o chão. Pior para Daniel Martin, que, se não brigaria pelo título, poderia incomodar primeiramente no TTT, depois para ganhar alguma etapa ou então ajudar Ryder Hesjedal juntamente com o resto da equipe. Meses de preparação acabaram em menos de 15 minutos. O canadense, campeão há dois anos na Itália, amargou um desastroso tempo de 3min26s atrás da Orica-GreenEdge, forte em TTTs e pouco além disso.

Omega Pharma-Quick Step (Rigoberto Urán) e BMC Racing (Cadel Evans) ficaram próximos (5s e 7s), Tinkoff-Saxo (Rafal Majka), Astana (Michele Scarponi?) e Movistar (Quintana) perderam um pouco mais (23s, 38s e 55s) e Katusha uma eternidade (1min33s). Um dos principais favoritos ao título, o espanhol Joaquim “Purito” Rodriguez Oliver, que tem 9 Grand Tours concluídos no top 10 no currículo, já se distanciava da tão sonhada conquista inédita.

2ª Etapa, 10 de maio – 219km (perfil)
SR / GC
Alemão Marcel Kittel (ou “Martchela Kíteli”, na empolgada transmissão italiana) ganhou o primeiro de muitos sprints em uma etapa plana. Deixaram o holandês Wilco Kelderman ganhar 3s. Nada mais.

Marcel Kittel01

3ª Etapa, 11 de maio – 187km (perfil)
SR / GC
Kittel ganha o segundo de muitos sprints em uma etapa plana, sagrando-se campeão do Giro d'Irlanda. Outros tantos só não se concretizaram porque o alemão abandonou no dia seguinte, de descanso / viagem até a Itália, com febre. O pelotão deixou Scarponi, Majka e Robert Kiserlovski juntos com o grupo do alemão, resultando em 11s de graça.

Marcel Kittel02

5ª Etapa, 14 de maio – 203km (perfil)
SR / GC
Duas montanhas leves (categoria 4) nos 20km finais foram o suficiente para tirar os sprinters do páreo. Purito tentou um ataque frustrado, o italiano Diego Ulissi venceu e o australiano Evans deu as caras em 2º. Como consequência, ultrapassou Urán na GC por conta do bônus aos 3 primeiros colocados em cada dia (na maioria das etapas, 10s ao 1º, 6s ao 2º e 4s ao 3º). A GC já apresentava os principais concorrentes nas posições de destaque.

Diego Ulissi e Cadel Evans (à esq.)

6ª Etapa, 15 de maio – 247km (perfil)
SR / GC
Não fosse pela distância, a segunda etapa mais longa do Giro-2014 seria sem graça, mesmo com a chegada de quase 10km de subida até o Montecassino. Mas a 6ª etapa se transformou na primeira controvérsia da prova. Uma série de quedas restando cerca de 11km “dizimou o pelotão”, como contado pelo narrador da Eurosport. Enquanto Giampaolo Caruso – que já havia sofrido uma queda na 2ª etapa – permanecia imóvel no asfalto por vários minutos e outros seguiam o percurso com ferimentos diversos, Evans acelerava com a fuga para ao final do dia ganhar preciosos 53s sobre os principais adversários. Estava claro que ele queria abrir a maior vantagem possível antes de chegar aos Alpes, onde certamente perderia terreno.

Se é verdade que não existe regra sobre quando (ou se) o pelotão deve esperar os atingidos por eventualidades como essa, também o é que escolher permanecer no conforto do meio do pelotão com a estrada escorregadia te deixa mais propenso a sofrer com quedas. E que se desgastar à frente do pelotão às vezes pode oferecer uma recompensa. Purito completou a etapa 7min43s atrás do vencedor, mas acabou engrossando a lista de abandonos. Os italianos Scarponi e Damiano Cunego – este com hematomas e sangue escorrendo na perna esquerda – também perderam tempo na GC.

Michael Matthews e Cadel Evans (à esq.)

8ª Etapa, 17 de maio – 179km (perfil)
SR / GC
O primeiro dia com escaladas de respeito na parte final viu Evans assumir a maglia rosa escoltado pelo suíço Steve Morabito, que se tornou o 4º na GC. Mais significante que os “líderes” nas montanhas, que chegaram com diferenças mínimas, o dia foi ruim em especial para os italianos. Ivan Basso, campeão em 2006 e 2010, não mostrou a que veio e perdeu 24s, enquanto Scarponi, que iniciou a etapa a 2min28s do líder, deu adeus definitivamente a qualquer esperança cruzando a linha mais de 9min atrás. A Astana passou a apostar suas fichas no jovem Aru, de 23 anos, então 5º na GC, a 1min39s do australiano.

Evans assume a maglia rosa após a 8ª etapa

9ª Etapa, 18 de maio – 172km (perfil)
SR / GC
Uma das muitas etapas em que manifestações calorosas da torcida (em faixas, cartazes, frases no asfalto e até em roupas) não eram direcionadas aos competidores, e sim para reverenciar um ídolo. As bandanas do “pirata” Marco Pantani marcaram presença em todo o Giro-2014, que lembrou uma década da morte do último campeão do Giro e do Tour de France em um mesmo ano, em 1998, e em especial na 9ª etapa, que passou próximo de onde o italiano cresceu – região de Cesena. Montanhas 3-4-2, com chegada na última, não prometiam mudanças significativas na ponta. E assim foi.

Domenico Pozzovivo foi o único que ganhou tempo (26s + 4s de bônus pelo 3º lugar) em um grande ataque, pulando de 10º para 4º na GC. O italiano que apareceu “de repente” entra os favoritos continuava discreto, garantindo que o objetivo era ficar entre os 5 primeiros e ganhar uma etapa. Destaque do dia para o sprint típico do ciclismo de pista protagonizado por Pieter Weening (Orica-GreenEdge) e Davide Malacarne (Europcar) para definir o vencedor. Melhor para o holandês.

Domenico Pozzovivo cumpre promessa de atacar

12ª etapa, 22 de maio – TT de 41,9km (perfil)
SR / GC
Primeira grande virada no Giro-2014. Um TT com a primeira “intermediária” só subindo, a segunda só descendo e a terceira no plano e subindo proporcionou mudanças significativas durante o próprio percurso. Para exemplificar dentro do top 5, na primeira marcação Pozzovivo (então 4º na GC) passou 40s abaixo do tempo de Majka (3º). Na segunda parcial, 13,6km depois, o polonês aparecia colocando 18s no italiano.

Em qualquer TT Evans é um nome a ser observado. Porém, as características ascendentes mencionadas tendiam a diminuir o favoritismo do então líder do Giro. Se o montanhista Quintana não é fora de série em TTs, o mais otimista dos colombianos poderia até imaginar uma vitória de Urán, mas não com a margem com que ela aconteceu – o que lhe rendeu a maglia rosa. No “confronto direto” no Giro de 2013, Urán bateu Evans por mais de 1min em um TT de montanha, mas em outro com o perfil suave e mais próximo deste, o australiano que levou a melhor por pouco mais de 1min.

Rigoberto Urán toma maglia rosa após vitória no TT
Penúltimo a largar, Urán faturou a etapa por incríveis 1min34s de Evans – entre eles, Ulissi, da Lampre, ficou 1min17s atrás do colombiano. Majka também fez um bom tempo e Pozzovivo não teve grandes perdas. Assim, ambos mantiveram a 3ª e a 4ª posição, respectivamente. Quintana perdeu astronômicos 2min41s e ainda assim subiu de 8º para 6º. Mesmo com mais 9 etapas pela frente, incluindo um TT de montanha e os Alpes, onde tudo costuma ser decidido, neste momento Urán, vice-campeão em 2013, aparecia como o nome a ser batido, pela performance que tinha acabado de apresentar atrelada à vantagem para os demais. A dúvida que permanecia era se o preço pago pelo esforço na etapa solitária seria alto demais nas escaladas, principalmente contra o compatriota “rei das montanhas”.

Um último destaque para a declaração do sorridente Urán após a vitória: “To win a time trial has great significance for me personally, for my team and for Colombia. And to take the maglia rosa as well is a nice surprise. There’s a long way to go, of course, and the real mountains are still ahead of us, but today is important. I came here twice to look at the route. I worked hard with [bike manufacturer] Specialized and went to the wind tunnel in California. I rode well in the time trial at the Tour of Romandie. During the race today, I was given repeated updates on Cadel Evans’ times, and I think it made a difference. I wanted to do well today, but I didn’t expect to win and take the jersey”.

Na Era das overdoses de “Graças a Deus a oportunidade apareceu, fui feliz e agora é continuar trabalhando”, é legal ver o que é trabalho duro de verdade, com um atleta revelando o que foi feito por ele e pela equipe na preparação a longo prazo, e ter a consciência de que um resultado não acontece por sorte.

14ª etapa, 24 de maio – 164km (perfil)
SR / GC
Início das montanhas de respeito e, como prometido, Pozzovivo arrisca diversos ataques. No mais bem sucedido deles, é acompanhado por Quintana e ao fim da etapa reclama do colombiano, que se recusou a cooperar no trabalho para ganhar tempo sobre os demais porque estaria em seu limite e próximo da chegada lançou seu próprio ataque – que rendeu apenas 4s de diferença entre eles. O estrago da etapa entre os favoritos não foi tão grande. Quem mais lucrou foram Pierre Rolland e Hesjedal, que chegaram pouco mais de 10s antes de Quintana e ganharam respectivamente 3 e 4 posições na GC, chegando a 9º e 12º.

O segundo dia vestindo a maglia rosa não foi dos melhores para Urán. Entre aqueles que iniciaram a etapa no top 10, ele foi apenas o 8º a superar as 4 montanhas (3-1-2-1) do percurso. O colombiano viu diminuir a vantagem que tinha para os sete adversários que vinham imediatamente atrás dele. Se a ressaca ainda poderia ser colocada na conta do esforço no TT, dois dias antes, o sinal de alerta parecia exagerado. Ainda.

Montanhas começam e Nairo Quintana passa a olhar só pra trás

15ª Etapa, 25 de maio – 225km (perfil)
SR / GC
O dia com os ataques mais impressionantes do Giro-2014 até então. 205km sem nada acontecer até o encerramento da etapa com 19,4km de subida a 7,5% (categoria 1). Então 7º na GC, Aru mostrou todo seu potencial ao vencer no Montecampione e subir para 4º. O ataque inicial foi acompanhado somente por Urán, até que os dois foram alcançados por Quintana e Rolland e, posteriormente, o líder não resistiu. Ficava um pouco mais claro que a resistência de Urán nas escaladas não era a ideal, já que era a 4ª etapa concluída em subida e apenas em 1 ele não havia tomado tempo do compatriota mais novo (chegaram juntos na morna 9ª etapa). Além dos 20s “naturais”, Quintana ainda levou mais 4s de bônus, entrando no top 5. Apesar disso, a diferença entre eles ainda era de 2min40s, restando 3 etapas ascendentes e o TT de montanha. Se Quintana continuasse a tirar “só” 20s ou 30s por dia, só tomaria a liderança uma semana depois que o Giro acabasse...

A véspera do último dia de descanso também foi decisiva para Pozzovivo, que pela primeira vez não mostrou a mesma força das escaladas anteriores (tomou 1min13s de Aru, caindo de 4º para 6º na GC), e, definitivamente, para Basso, 2min17s atrás do vencedor, somando quase 8min de para Urán na GC.

Fabio Aru vence no Montecampione

16ª Etapa, 27 de maio – 139km (perfil)
SR / GC
Passo dello Stelvio, 2758m de altitude
Depois do último descanso, restavam 6 etapas para o Giro-2014 ser decidido. Efetivamente, 4 delas fariam a diferença, já que a 17ª praticamente retornava às planícies e a última (21ª) é a última. Sensacionalisticamente, a etapa para ser chamada de épica, histórica, inesquecível, espetacular, decisiva ou o adjetivo (ou superlativo) que melhor couber no título, seria esta, que mesmo não tão longa reservava duas montanhas de categoria 1 e de quebra, entre elas, o “cima coppi” (altitude mais elevada atingida durante as 3 semanas), na gelada sequência de escaladas Passo Gavia – Passo dello Stelvio – Val Martello. Se as 4h42min35s mereceram esses e outros superlativos foi pelos motivos errados. E segue um esboço do Tratado do Stelviogate.

- Antes da etapa
Charly Gaul, em 1961
A controvérsia relacionada à dita “Etapa Rainha” do Giro-2014 começou um dia antes da mesma acontecer. Porque houve dúvidas se ela seria realizada. O clima congelante, especialmente nas duas primeiras montanhas, era bem conhecido dos organizadores – aqueles que fazem, quando fazem, o percurso dentro de um carro com o vidro fechado. Histórias dignas de todo tipo de exagero por parte dos que relatam as disputas – muitas vezes da cadeira da redação – lembravam pedaladas pelos muros de gelo em 1961 (foto ao lado) e 1988. Mas o histórico recente também incluía o cancelamento da 19ª etapa em 2013, que passaria pela região e teria a chegada no Val Martello, devido às condições adversas. A organização, porém, confiou em suas fontes meteorológicas e garantiu que a etapa seria segura. A superação na neve, como a 20ª etapa de 2013 que completou a consagração de Vincenzo Nibali, estava entre as previsões mais otimistas para o público...

Colômbia abaixo de zero

- Durante a etapa
A transmissão completa da etapa pela Rai pode ser vista neste link. Passo Gavia: tudo “bem”. Pelo Twitter, rapidamente começaram a pipocar mensagens de repúdio à realização da etapa, por parte daqueles que não estavam competindo, obviamente.






Conforme o Passo dello Stelvio se aproximava as condições levemente desumanas aumentavam. E a possibilidade de cancelar uma etapa em curso era nula. Enquanto uns chegavam ao limite, outros disparavam seus “épicos”. Até que chegou à transmissão da Eurosport e aos “live scores” a notícia de que a descida do Stelvio, de quase 25km, seria “neutralized”, por conta do forte nevoeiro que limitava a visibilidade. Minutos depois a confirmação veio no perfil oficial da prova no Twitter.


O que isso significava nem narrador e comentarista da emissora europeia sabiam. Com o tempo, ficou claro que nem a organização sabia. Um carro à frente do pelotão, limitando a velocidade – como o popular safety car no automobilismo ou como no início de cada etapa – não seria colocado em prática facilmente, mesmo se houvesse um único pelotão. A fuga não estava constituída como na maioria dos dias e para piorar – para as intenções da organização! – perto do topo o italiano Dario Cataldo (Team Sky) atacou, com sucesso, em busca dos pontos pela montanha. Colocariam um carro à sua frente e no final da descida o deixariam com a mesma vantagem que tinha para os demais no topo? Juntariam todos e ele que se desse mal? Não fariam nada?...

No grupo dos favoritos, muitos pararam, literalmente, após a montanha. Desceram da bicicleta e colocaram mais uma blusa para amenizar a sensação térmica na descida longa e íngreme. Outros colocaram enquanto pedalavam. Outros não fizeram nada. Com o agasalho escuro era difícil identificar cada ciclista, até mesmo Urán, que cobriu a maglia rosa. E eis que, minutos depois, Quintana, Hesjedal e Rolland tinham quase 1 minuto de vantagem para todo o resto! A descida não estava neutralizada. Estava? Em algum momento ela tinha sido neutralizada? Ninguém tinha respostas. Para piorar, via Twitter, o Giro “se corrigiu”: exatamente 30 minutos depois apagou o tuíte anunciando a descida neutralizada e se desculpou.


De imediato, algumas equipes não receberam muito bem as desculpas. Com razão.



Mesmo que o meio oficial de comunicação entre organização e equipes durante as etapas seja o rádio no carro dos diretores, uma conta verificada no Twitter também é um canal oficial. Se não causou a confusão, no mínimo ajudou a piorar.

O estrago estava feito e ao final da descida a vantagem era próxima de 50s. No trecho de quase 20km de planície antes do Val Martello o trio continuou imprimindo um ritmo forte e ampliando a vantagem para os demais, como se fizessem um TTT. Urán, raramente assistido por companheiros de OPQS, usou a Tinkoff-Saxo, que tinha Michael Rogers trabalhando para Majka, e a AG2R-La Mondiale, com Alexis Vuillermoz puxando Pozzovivo, na tentativa de limitar as perdas. Em vão. No pé do Val Martello, o cronômetro beirava 1min50s (o que ainda deixaria Urán líder, por 50s!).

Então a última escalada do dia começou. Em defesa do trio, qualquer um pode explicar que mesmo restando apenas 10km de subida, a vantagem era de “apenas” 2min20s. Ou seja, os 4min11s que Quintana colocou em Urán (mais 10s de bônus!), tomando-lhe a maglia rosa, foram, em grande parte, frutos de seus ataques incessantes nos 7km finais.

Começo da 16ª etapa tranquilo...

... e do meio pra frente nem tanto





Hora de descer

- Após a etapa
O famoso “se”, que não entra em jogo em nenhum esporte, passou a fazer parte do Stelviogate. E se o trio tivesse esperado o líder na planície? E se todos tivessem descido juntos? O trio atacaria na parte plana? Ou pedalariam como um pelotão preguiçoso? Todos chegariam ao pé do Val Martello nas mesmas condições? E se o líder estivesse na roda de um adversário o atacando, e não algumas centenas de metros atrás, sem contato visual? E se não tivesse havido falha na comunicação entre organização e equipes? E se não tivesse havido etapa? E se o Lance Armstrong não tivesse se dopado? E se o Pantani não tivesse morrido de overdose?

A repercussão entre os ciclistas continuou. Uns mais calmos, como Rogers, outros forçando certo otimismo, como o agora vice-líder Urán, e outros, como o brasileiro Murilo Fischer, que não foi atingido diretamente pela falha de comunicação, revoltado com a realização da etapa.





Para engrossar a insatisfação do brasileiro, cabe a lembrança de que 7 competidores abandonaram o Giro 2014 nesta etapa, entre eles Scarponi, e outro não largou. Fora do Twitter, as declarações à imprensa também variavam. Kelderman, 1º a chegar depois do trio, disse que foi injusto, porque ele não teria parado no topo do Stelvio pra vestir a blusa se não tivesse sido avisado da neutralização. Majka resumiu que “as regras não foram as mesmas para todos” e Pozzovivo simplesmente ignorou qualquer confusão (e eventual neutralização): “Eu desci o mais rápido que pude”.

Entre as equipes a revolta era ainda maior com o trio e outros ciclistas que aceleraram. Aquelas que não foram diretamente afetadas, como a Lotto-Belisol e a Katusha, confirmaram que foram avisadas somente dos riscos da descida e que a mensagem (pelo rádio) não mencionava “neutralização”. Diretores esportivos da Trek Factory Racing e da Cannondale disseram que não ficou claro se a descida seria neutralizada. No relato diário, a Trek falou em “mensagem ambígua que nem todas as equipes receberam”. A Tinkoff-Saxo foi mais incisiva ao afirmar que “o caos reinou na controversa 16ª etapa e que a organização criou condições desiguais de disputa entre os atletas”. O diretor esportivo Lars Michaelsen ainda destacou que algumas equipes devem saber que o que fizeram foi questionável, mas a ação dos organizadores foi inaceitável. Maior prejudicada pelo Stelviogate, a OPQS amenizou a situação mencionando o caos criado pelo tempo em um dia confuso. Mas o gerente da equipe, Patrick Lefevre, foi categórico: “Nós perdemos o Giro por um erro da organização. Nós nunca deixaríamos Quintana escapar se a descida não estivesse neutralizada”, disse o belga, que ainda exigiu a demissão do diretor do Giro. Ele e outros diretores organizaram um breve motim que teve continuação no dia seguinte.

Quintana vence no Val Martello e virtualmente conquista
o Giro-2014 em dia de controvérsias e desorganização

Em meio ao caos, a Movistar, agora líder com Quintana, desconversou. Seu relato da etapa enaltece o colombiano, obviamente, e diz que Quintana e Rolland foram os únicos “atentos na descida entre os favoritos”. Seus diretores jogaram a “culpa” para Hesjedal e a Europcar, ao afirmar que o ataque partiu deles e que seu capitão simplesmente os acompanhou. Na transmissão completa da etapa, pode-se ver em 2h17min53s Rolland e Hesjedal passando rapidamente pelo topo do Stelvio e logo atrás Quintana, vestindo uma blusa enquanto pedala. O momento do ataque não é exibido. A melhor declaração, contudo, ficou reservada a Eusebio Unzue, gerente da Movistar: This controversy has taken away from the value of Nairo’s ride, who demonstrated everything on the road. It’s a day that should have been celebrated for our sport, for the difficulty, the extreme conditions, for its spectacular images, and the best qualities of our sport, and instead, we lose this because of the polemic. It’s sad for cycling”.

No dia 27 de maio de 2014, na 16ª etapa do Giro d’Italia, a polêmica, a confusão e, principalmente, a desorganização, venceram e entraram para a história de maneira épica.

Europcar e Quintana atrás de moto
(acelerando ou freando?)
com bandeira vermelha no Stelvio
Mais tarde, ainda no mesmo dia, surgiram as gravações oficiais do aviso que a organização emitiu pelo rádio às equipes, em italiano e depois em inglês. O comunicado explica que motos com bandeiras vermelhas estariam um pouco à frente dos ciclistas nos primeiros 1,5km da descida do Stelvio. Se estariam reduzindo a velocidade dos ciclistas ou apenas tentando contornar a pouca visibilidade na estrada, permanece a dúvida. O que fica claro é que a palavra “neutralized” não é dita nenhuma vez. Assim como também ficam claros os trechos “not to attack on the downhill, to avoid the risky situation” e “accelerate only where the red flag is down”.


Quintana veste a maglia rosa pela primeira vez

17ª Etapa, 28 de maio – 208km (perfil)
SR / GC
Após Stelviogate, Quintana passa pelo primeiro
sign-in como líder do Giro d'Italia 2014
Reza a lenda que depois da tempestade vem a bonança. No Stelviogate, a superstição só se aplica à esperadamente sonolenta 17ª etapa. A frustração da OPQS com o dia anterior era tanta que o perfil da equipe no Twitter se ocupou mais em narrar a abertura do Belgium Tour do que a 17ª etapa do Giro. Até dá pra entender. Afinal, trata-se de uma equipe belga e com um capitão belga com chances de vitórias em uma prova no seu país – no caso, Tom Boonen realmente levou a melhor no sprint. Se na Colômbia, onde 11 de 15 jornais disponíveis no Newseum traziam Quintana na capa, com direito a foto, e nos 208km estava tudo muito bom e tudo muito bem, fora da etapa realmente continuavam as controvérsias.

Antes da etapa, Lefevre e outros diretores de equipes se reuniram e pediram à organização uma penalização não divulgada (algo entre 1min30s e 2min) para Quintana, Rolland e Hesjedal por conta do ocorrido na véspera. A organização da prova, RCS Sport, aceitou, mas a UCI recusou o pedido. A imprensa italiana sugeriu que até a Movistar estava conformada e imaginava que teria parte da vantagem de Quintana retirada.

No dia seguinte, ainda sobre a possível punição que não foi efetivada, Kiserlovski, da Trek, mostrou que não tinha engolido o ataque do trio: “These guys for me, there are no words to tell. For me they are not riders. If you ask me, they should be penalized 20 minutes. They are not champions to me. In the group, we know all about this situation. It’s not right”, disse o croata à VeloNews. Para completar, Rolland declarou à Cyclingnews que sequer reparou em moto com bandeira vermelha na descida. Hubert Dupont (AG2R) e Jarlinson Pantano (Colombia) talvez também não tenham notado, já que estavam à frente da moto...


Dupont e Pantano descem o Stelvio à frente da moto com bandeira vermelha

Para completar as lambanças e passar no RH, a conta do Giro no Twitter apresentou, ao fim da 17ª etapa, “Urán vestindo a maglia rosa”. Depois de tudo que foi dito, e se... ah, fica pra outro dia.

Perfil do Giro continua "wrong communication"
e "devolve" maglia rosa a Urán no Twitter

18ª Etapa, 29 de maio – 171km (perfil)
SR / GC
Para quem não é colombiano, o penúltimo dia de montanhas (1-2-1) foi frustrante. Para o montanhoso país da América do Sul, o êxtase que já durava uma semana – desde que Urán tomou a maglia rosa e só a perdeu para um compatriota – teve seu ápice. Como se não bastasse ver líder e vice-líder levando o nome do país na GC, a etapa também foi decidida por 2 colombianos, com Julian Arredondo Moreno (Trek), de 25 anos, levando a melhor sobre Fabio Duarte Arevalo (Colombia) depois de muitas mudanças na ponta da fuga. Arredondo, de quebra, foi campeão como “rei das montanhas”. O sucesso colombiano é difícil de ser explicado, já que muitos ciclistas são “criados” na Europa (Urán está há 8 anos no velho continente, Quintana há quase 4). Mas ter altitude, montanhas e a vontade de retomar a tradição de algumas décadas atrás já são um bom incentivo.

Para quem é australiano, o dia também foi importante, mas pelo cenário inverso. Evans foi o primeiro do top 10 a sofrer na última montanha, em ataque iniciado por Rolland, e despencou da 3ª para a 9ª posição na GC, praticamente dando adeus às chances de pódio. O ataque do francês o alçou à 3ª colocação, mas nos 350m finais foi Aru quem ditou o ritmo. Quintana, como quem já se preparasse para o TT montanhoso do dia seguinte, permitiu 3s ao italiano ao preferir marcar Urán, que não demonstrava ter forças para baixar a diferença de 1min41s em quase 27km de TT.

No "dia dos colombianos", Julian Arredondo
vence no Rifugo Panarotta

19ª Etapa, 30 de maio – TT de 26,8km (perfil)
SR / GC
Como não parecia possível tirar 1min41s na última etapa de montanha, a expectativa era que Urán pudesse ao menos diminuir a diferença para a penúltima etapa. Mas o desempenho em todos os dias com escaladas não era animador para um TT... montanhoso. O 1º trecho de quase 8km praticamente plano criou uma oportunidade (ou dificuldade) extra: trocar de bicicleta antes da escalada de categoria 1. E as coisas fluíram para Urán até aí: ele foi o mais rápido na 1ª parcial (16s melhor que Quintana) e a OPQS fez um “pit stop” melhor que a Movistar. Ladeira acima, o dia foi um duelo entre Quintana e Aru, então 4º na GC e vestindo a camiseta branca herdada do colombiano, que foi brilhante por 1h05min54s. O desempenho impressionante do italiano, que até mesmo ultrapassou Majka, que havia largado 3 minutos antes, lhe rendeu 1min40s de vantagem para Rolland no dia e o lugar do francês no pódio. Pozzovivo fez o mesmo com Hesjedal, mas o canadense precisou trocar de bicicleta uma 2ª vez no meio da montanha e encerrou o Giro em um melancólico 9º lugar.

Conquistar sua segunda etapa era questão de honra para Quintana, como se tentasse deixar de lado que a primeira tinha sido aquela... O colombiano foi irretocável na subida, bateu Aru por 17s, abriu 3min07s para Urán na GC e o Giro, extraoficialmente, teve seu final. Mas o TT Bassano Del Grappa – Cima Grappa no máximo colocou um ponto e vírgula no Stelviogate.

Curiosamente, os 5 melhores do TT também formaram o top 5 da GC, apenas trocando Aru de lugar com Urán, constituindo a dobradinha colombiana no resultado final.

Aru "dá volta" em Rafal Majka

20ª Etapa, 31 de maio – 167km (perfil)
SR / GC
Arquibancada do Monte Zoncolan vê
Michael Rogers pedalar para a vitória
A chegada ao Monte Zoncolan merecia mais. Basicamente cumpriu tabela, vendo um grupo de 16 escapados em busca da vitória enquanto ninguém no top 10 parecia ter forças para um ataque capaz de alterar a GC. Os locais trataram de dar as boas vindas ao pelotão no pé dos 10,1km de 11,9% de gradiente com uma faixa-pórtico onde se lia: La porte dell’inferno. O charme da montanha é ter a estrada tão estreita que os carros são proibidos de acompanhar os ciclistas, fazendo os mecânicos sofrerem um pouco mais que o normal ao subirem em motos, carregando nas costas bicicletas para eventuais problemas mecânicos.

Enquanto “Aru” era a principal inscrição no asfalto, fruto do despertar do público para o italiano no dia anterior, um “falso ataque” da Movistar logo no início da escalada deixou até o seu líder para trás! Quintana tratou de reagrupar a equipe enquanto se via mais do mesmo das 3 semanas anteriores: Movistar na ponta, Evans e Basso atrás do pelotão, Hesjedal sofrendo, Kiserlovski atacando sem convicção.

A OPQS resolveu aparecer restando 4km, com Wouter Poels fazendo o trabalho para Urán e somente Quintana acompanhando. Pela primeira vez o colombiano foi minoria em uma montanha, mas administrou quando ficou sozinho com o compatriota até completarem o Zoncolan juntos, num reconhecimento mútuo de que cada um teve um adversário à altura.

O grupo seguinte reuniu do 3º ao 6º na GC. Aru acusou o golpe pelo esforço no TT e “só” conseguiu arrancar mais 4s de Rolland e 9s de Pozzovivo, garantindo seu lugar no pódio. Na liderança do dia, a etapa praticamente se decidiu pelo excesso de empolgação do público, que por várias vezes incomodou os ciclistas e recebeu um “chega pra lá” em troca. Restando 3km, um torcedor com a melhor das intenções empurrou Francesco Bongiorno (Bardiani CSF), ele bateu na traseira de Rogers e para não cair precisou parar de pedalar e recomeçar do zero. A partir daí o australiano foi sozinho para a vitória.

21ª Etapa, 01 de junho – 172km (perfil)
Nada a acrescentar.

Movistar completa ruma a Trieste escoltando o campeão Quintana

Depois da curva
- Há de se destacar que, como visto na foto acima, a Movistar terminou o Giro com a equipe completa. Além dela, somente a Trek chegou com os 9 integrantes a Trieste.

- Bi-vice, Urán esbanjava sorrisos no pódio. O Mick Jagger do ciclismo disse que Quintana teria conquistado o troféu mesmo sem atacar na descida do Stelvio – que ainda ecoa. Seu principal – e praticamente único – ajudante foi Poels e, mais importante, a OPQS raramente se posicionou à frente do pelotão para ditar o ritmo. Talvez tenha batido aquela saudade da Sky...

Rigoberto Urán (+2min58s), Nairo Quintana (88h14min32s) e Fabio Aru (+4min04s)

- Sky que não vive a temporada dos sonhos como em 2013 ou mesmo em 2012. O Giro foram 3 semanas perdidas, visto que Porte, escolhido para ser o capitão, foi substituído por ninguém e deverá ajudar Froome no Tour. E Wiggins? Diz que pode trabalhar para o atual campeão. A conferir.

- Declarações de Quintana após a 20ª etapa:
Sobre o Monte Zoncolan: “Today, it was a spectacular stage that added to my lead, in the maglia rosa which I won in a very difficult day when many didn’t want to see the beauty of the stage. This motivated me for the mountain time trial, when I demonstrated who I really am as a cyclist”.
Ninguém vai esquecer. E ele?

Sobre escolher o Giro: “It was a pretty difficult decision on Eusebio’s (Movistar manager) part, but it was perhaps the best decision we could have taken. I’ve learned a great deal here: how to ride in different conditions, when I was ill, when I was wearing the maglia rosa… how to lead a team in a 3 week tour. I’m very grateful to the Giro d’Italia”.
O tom de despedida transparece nessa declaração. E mais importante que o Giro só o Tour de France. A conferir. Mas só em 2015.

Colombiano Nairo Quintana (Movistar) e o troféu mais bonito dos Grand Tours

*Título alternativo: Stelviogate faz história no Giro d’Italia 2014. E o Nairo Quintana com isso?

Para manter a tradição recente, os jornais colombianos de segunda-feira:









Até o jornal que só coloca mortos na capa celebrou a vida.
Mas manteve a linha editorial na chamada superior